quinta-feira, 22 de maio de 2008

Manifestos

Zuenir Ventura - Manifestos - O Globo 21/05/2008

Os manifestos voltaram à moda! Só nestes últimos dias recebi uns três para assinar. Não assinei nenhum porque desde que passei a dispor de um espaço privilegiado para dar minhas opiniões, achei que não seria correto fazer campanha, contra ou a favor. Aqui não é o lugar de militância. Não subscrevo documento coletivo nem mesmo acerca do óbvio - contra o aquecimento da Terra ou a favor da salvação da espécie animal, por exemplo. Só abro exceção para anúncio fúnebre, que não deixa de ser uma espécie de manifesto em homenagem ao morto. E, no entanto, passei parte de minha vida assinando manifestos. Uma amiga chegou a pensar em escrever uma peça teatral sobre os anos de chumbo com o título: "Zelito, Ziraldo e Zuenir. Ou o fim dos manifestos".

Ela pretendia brincar com a mania que parecia ter desaparecido e com os três Z que encerravam sempre os abaixo-assinados contra o regime militar. Como a ordem era alfabética, percebemos com o tempo que isso era uma desvantagem para nós, porque policiais preguiçosos conseguiam mostrar serviço indo direto ao final. Já sabiam até os endereços.

Muita coisa mudou. Manifesto não dá mais cadeia e não precisa passar de mão em mão: chega pela internet, o que é mais rápido, embora possa dar margem a falsificações. Como saber que a inclusão de um nome foi autorizada pelo próprio, já que proliferam na rede até textos apócrifos? Eu mesmo já li alguns, atribuídos a mim, que nunca os escrevi.

Outra diferença é que antes eles eram previsíveis: contra a censura e a tortura ou a favor da liberdade de expressão. Com a dificuldade de consenso dos novos tempos, é cada vez mais comum o surgimento de um tema atraindo posições antagônicas. Dois dos manifestos que recebi agora são opostos e tratam da questão das cotas ou reserva de vagas nas universidades como política para contemplar a exclusão dos negros. Nomes que estariam na mesma fileira, provavelmente pensando da mesma maneira, estão hoje em lados contrários, como, entre muitos, Caetano Veloso, João Ubaldo, Cesar Benjamin, Yvonne Maggie, Gilberto Velho, que integram o time dos que rejeitam a medida; e Oscar Niemeyer, Nelson Pereira dos Santos, Augusto Boal, Otavio Velho, favoráveis ao sistema.

Antigamente, para uma decisão dessa natureza, era só abrir o catecismo ideológico e ver o que a esquerda e a direita recomendavam. Era tão mais fácil! Hoje, sem a ideologia para abençoar as tomadas de posição, a escolha se baseia nos argumentos favoráveis ou contrários a uma causa, não na sua filiação. Ninguém tem mais a cabeça feita prévia e automaticamente, há que pensar por conta própria. Essa falta de bússola pode desorientar, dar mais trabalho, mas significa que caímos de fato numa democracia, que é o reino plural da controvérsia e do desacordo.

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