A meu ver o fato normal, o fato lógico, o fato indiscutível merece apenas a nossa repulsa e o nosso descrédito. É preciso captar ou, melhor, extrair de cada acontecimento o que há, nele, de maravilhoso, de inverossímil e, numa palavra, de milagre. E não vejo como se possa viver e sobreviver sem esse milagre.
Agora mesmo no plano do futebol, temos um autêntico – o do América. Pergunto: – o que é a jornada do América, do fim do returno até hoje, senão isto mesmo, ou seja, o milagre taxativo, irrefutável, triunfal? Basta ver o seguinte: – entre nós, o futebol vinha se arrastando em termos crassamente esportivos e técnicos. Faltava-lhe esse mínimo de maravilhoso, sem o qual os times, as pessoas e as nações fenecem na mais torva e ignara das mediocridades. A rigor só havia, em campos brasileiros, um único e escasso milagre, qual seja o da camisa rubro-negra.
De fato, o que se sucede com a camisa do Flamengo desafia e refuta todas as nossas experiências passadas, presentes e futuras. Vejam vocês: – uma camisa que só falta dar adeusinho e virar cambalhota. Quando o time não dá mais nada, quando a defesa baqueia, e o ataque soçobra, vem a camisa e salva tudo. Diante dela, todos se agacham, todos se põem de cócoras, todos babam de terror cósmico. E vamos e venhamos: – como resistir a uma camisa que tem suor próprio, que transpira sozinha, que arqueja, e soluça, e chora? O Flamengo só perde quando não põe para funcionar o milagre da camisa.
Vejamos o América: – suas atuações pertencem ao mais puro, ao mais genuíno, ao mais categórico sobrenatural. No dia do jogo com o Flamengo, um sujeito urrou, atrás de mim: – " Vá jogar assim no raio que te parta! " De fato, era demais. Mas eu falei em dois milagres no futebol brasileiro: – o América e o Flamengo. Esqueci de um outro, anterior, e que é também considerável.
Eis o caso: – havia, em Niterói, um perna-de-pau, tuberculoso há 14 anos. Devia estar morto, enterrado e, no entanto, sobrevivia o diabo do homem, com um pulmão esburacado e inexpugnável. Em campo, ele corria mais que os outros, os atléticos, os eugênicos. Um dia, porém, o presidente do clube lhe desfere à queima-roupa, o primeiro elogio que o perna-de-pau jamais sofrera.
Foi trágico: – aquele pulmão indômito, que agüentava até chumbo derretido, sucumbiu ao elogio. Explodiu uma hemoptise medonha. O sangue espirrava em todas as direções. Diante dessa hemorragia de esguicho, desse chafariz escarlate, os circunstantes tinham vontade de abrir guarda-chuvas. Querem pôr uma vela na mão do quase defunto.
E, súbito, as golfadas pararam. O perna-de-pau enxuga o lábio e vai, pelos próprios passos, a um consultório: – lá tiram-lhe uma radiografia. E foi um assombro mundial, horas depois, quando o médico viu uma imagem radiográfica de virgem, de passarinho. Eis o milagre: – um elogio assassinara o perna-de-pau e o mesmo elogio o ressuscitara.
Nelson Rodrigues
Publicado originalmente na antiga Manchete Esportiva, no dia 3/3/1956 e no Urublog em 25 /11/09 e em 20/5/10.
Mas ontem não rolou.
Paciência.
Saudações Rubro-Negras.
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